Por que é tão difícil dizer 'não' — e como aprender a fazer isso pode melhorar sua vida
12/11/2024
Em entrevista, a neuropsicóloga Alba Cardalda argumenta que a única forma de construir relacionamentos saudáveis é com honestidade e respeito aos próprios limites e aos dos outros. 'Não somos educados a dizer não', afirma neuropsicóloga espanhola
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Por anos, a neuropsicóloga espanhola Alba Cardalda observou em seu consultório que boa parte de seus pacientes tinha problemas nas relações pessoais porque não conseguiam dizer "não".
Isso a motivou a estudar a importância de se estabelecer limites de forma assertiva. De sua pesquisa, nasceu o livro Como mandar à merda (de forma educada).
A BBC News Mundo (serviço de notícias em espanhol da BBC) conversou com Cardalda, que alerta que a única forma de construir relacionamentos saudáveis é com honestidade e respeitando os próprios limites e os dos outros.
Confira a entrevista abaixo.
Deixar para trás o medo de dizer não é um 'trabalho progressivo', diz Alba Cardalda
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BBC - Por que é tão difícil dizer "não"?
Alba Cardalda - Porque não somos educados a dizer não e a poder dizê-lo de forma gentil ou assertiva. Pelo contrário: somos educados para agradar aos outros sem levar em conta as nossas próprias emoções.
Geralmente, somos consideradas pessoas egoístas ou até ruins se recusamos algo. Somos ensinados a priorizar o que os outros querem ou exigem, a não valorizar o que sentimos e a deixar de ser honestos com o que queremos ou não queremos.
Em parte, porque estamos sempre buscando a aprovação daqueles que nos rodeiam.
BBC - Como ser incapaz de dizer "não" nos afeta?
Cardalda - Não dar importância ao que realmente queremos nos leva a acumular pequenos desconfortos que podem afetar muito a nossa vida e a nossa saúde emocional.
Porque é algo que acontece todos os dias, mesmo que não percebamos. Por exemplo, quando um colega de trabalho lhe pede um favor — para substituí-lo ou para assumir algumas tarefas que não dependem de você — e você não consegue dizer "não".
Ou com amigos ou parentes que nos propõem um plano que às vezes não queremos, porque estamos cansados, e acabamos fazendo algo que não temos vontade.
Assumir coisas que não queremos fazer, ou que não temos tempo para fazer, gera sobrecarga, estresse e ansiedade.
Por outro lado, prejudica a nossa autoestima, porque ignorar as nossas preferências são pequenas autossabotagens contra nós mesmos.
É ausência de autocuidado, e isso tem um efeito importante.
BBC - No seu livro, você diz que o medo ou a culpa também desempenham um papel importante nas pessoas que não conseguem dizer "não". Como superar essa culpa e esses medos?
Cardalda - Quando, desde muito pequenos, aprendemos que dizer "não" pode gerar uma rejeição ou uma opinião negativa sobre nós, isso gera medo porque é uma ameaça à nossa autoestima.
Afinal, somos seres sociais e, portanto, a influência do nosso meio social é muito forte.
Então, você tem que fazer um trabalho progressivo. Não podemos esperar superar o medo ou a culpa da noite para o dia.
Primeiro, temos que estar atentos e identificar por que não conseguimos estabelecer um limite. Por que eu não disse "não" para essa pessoa?
Tenho medo de que ele fique com raiva ou pense que sou egoísta? Ou que não sou um bom amigo, um bom filho ou um bom parceiro? Somente respondendo a essas perguntas poderemos identificar o problema.
E, a partir daí, você pode traçar pequenas metas diárias para superar esses receios.
Por exemplo, pratique dizer "não" de uma forma que se sinta confortável.
Porque dizer "não quero" não é o mesmo que apresentar um argumento um pouco mais assertivo, mas igualmente honesto e respeitoso com o que queremos.
Fazer algo que não queremos por necessidade de aprovação externa — ou medo de dizer 'basta' — pode gerar sobrecarga, estresse e ansiedade
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BBC - Em suas pesquisas, você também fala que existem limites diferentes, como os físicos e os emocionais, e que estes últimos são os mais difíceis de serem demarcados. Por quê?
Cardalda - Porque são limites que não podem ser vistos. E, por isso, não fica tão claro quando são ultrapassados.
Portanto, é importante conhecer a si mesmo. Recomendo identificar seus limites negociáveis e os não negociáveis.
Ter isso claro permite que você seja mais flexível naquilo que não é tão importante para você.
A única forma de preservar o nosso bem-estar é estabelecendo limites. Porque isso também define o tipo de relacionamento que temos com os outros e é muito importante para criar vínculos saudáveis e nos rodear de pessoas que nos tratam bem.
Acho que temos que saber nos distanciar de pessoas que não nos tratam bem ou que não respeitam esses limites.
BBC - Em outras palavras, e citando o título do seu livro, "mandar à merda" de forma educada...
Cardalda - Exatamente.
Quando uma pessoa ultrapassa limites várias vezes, é completamente legítimo mandá-la à merda.
É a única maneira que temos de preservar a nossa dignidade. Fazer isso também proporciona muita paz mental e é essencial para a saúde emocional. É quase uma obrigação consigo mesmo.
O que acontece é que a outra pessoa imediatamente começa a te tratar com respeito.
BBC - Mas como dizer "vá à m..." de forma educada?
Cardalda - Sempre recomendo clareza acima de tudo. Se alguém está nos manipulando ou nos fazendo sentir mal, em vez de cair no jogo e procurar desculpas, devemos ser diretos.
Tem gente que faz você se sentir culpado, e acho isso uma manipulação horrível. É o que se chama de chantagem emocional.
Claro, é difícil perceber a quantidade de chantagem a que podemos ser submetidos e, inclusive, que essa chantagem pode ser feita de forma não consciente.
Existem chantagens emocionais que são muito explícitas, muito fáceis de detectar. Mas há outras que são muito sutis.
BBC - Por exemplo?
Cardalda - É comum que quando alguém faz algo por outra pessoa, inconscientemente espere que a outra pessoa faça o mesmo. E se essa outra não o fizer, ficamos com raiva.
A forma como nos comportamos para que a outra pessoa se sinta mal se não fizer o que queremos tem um elemento manipulador muito sutil. Mas é fundamental identificá-lo para que nossos vínculos sejam saudáveis e não baseados nesses elementos de manipulação.
Vínculos saudáveis são um dos principais motores da felicidade, segundo pesquisa citada pela entrevistada
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BBC - Como a manutenção de relacionamentos saudáveis pode contribuir para o nosso bem-estar e felicidade?
Cardalda - De acordo com o mais longo estudo sobre felicidade já feito, conduzido pelo professor de psiquiatria da Universidade de Harvard Robert Waldinger, as pessoas são mais felizes na medida que têm melhores laços sociais com o ambiente imediato.
Esta conclusão foi muito decisiva porque já se tinha afirmado que, para ser feliz, é preciso praticar muito esporte, ou viver mais em contato com a natureza, ou estar economicamente bem posicionado, ou trabalhar naquilo que se gosta...
Mas este estudo mostrou que o mais importante é manter vínculos saudáveis com outras pessoas.
E para que esses vínculos sejam saudáveis, uma das premissas é haver honestidade. As pessoas têm que ser capazes de se expressar com sinceridade e transparência. E não permitir coisas que incomodem ou ultrapassem seus limites.
Portanto, ter conversas incômodas nos permite construir relações saudáveis, fortes e duradouras.
BBC - No seu livro, você diz que não podemos entender o que são os limites sem falar sobre direitos assertivos básicos. Quais são eles?
Cardalda - São aqueles que todos nós temos pelo fato de sermos pessoas e que devem ser respeitados.
Por exemplo, o direito de ter a sua própria opinião; de dizer sim ou não; de ser tratado com respeito e dignidade; de mudar de ideia; de ser dono do seu próprio tempo, do seu corpo e da sua vida.
Esses direitos são muito importantes. Você tem que ser claro sobre eles e respeitá-los tanto nos outros quanto em você mesmo.
BBC - Qual papel as diferentes culturas desempenham em tudo isso? Existem regiões onde as pessoas têm mais dificuldade em dizer "não" do que outras?
Cardalda - Sim. A cultura desempenha um papel fundamental.
Se falamos de assertividade e de estabelecimento de limites, penso que na América Latina é mais complexo porque a sociedade é mais complacente. Muito mais do que, por exemplo, a cultura anglo-saxônica.
Embora os anglo-saxões tendam a ser mais educados, o "não" é assumido ou respeitado de forma politicamente correta. Na América Latina, o "não" é percebido quase como falta de educação.
Também existem diferenças entre homens e mulheres. As mulheres tendem a ser mais complacentes que os homens.
A religião também tem um papel importante nisso. O pecado original da cultura judaico-cristã está intimamente ligado ao sentimento de culpa por estabelecer limites ou expressar o que realmente sentimos ou necessitamos.
Para Alba Cardalda, as redes sociais aumentaram a necessidade de aprovação externa
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BBC - Quão mais difícil é dizer "não" hoje num mundo digitalizado que, de uma forma ou de outra, exacerba a necessidade de aprovação das pessoas?
Cardalda - Uma parte da necessidade de aprovação é inerente ao ser humano, pelo fato de ser um ser gregário, social. Precisamos da aprovação do grupo para sobreviver, por isso é tão importante para nós.
O problema surge quando essa aprovação social é excessiva, como acredito que esteja acontecendo cada vez mais fortemente por conta, em parte, das redes sociais, que quantificam a aprovação social com curtidas.
Se a pessoa precisa de aprovação externa para se sentir valiosa, gera-se uma dependência que não é correta, porque perdemos a individualidade e a capacidade de tomar decisões. E isso nos deixa infelizes porque tomamos decisões baseadas em agradar aos outros.
BBC - Essa necessidade de aprovação muda com a idade?
Cardalda - Sim. Com o passar dos anos, nos importamos menos com o que os outros dizem. Você não gostou? Bem, não posso fazer nada.
Você valoriza mais o seu círculo próximo e não perde mais o sono se alguém não gostar do que você disse.
Também tem a ver com estar ciente da importância do tempo. À medida que envelhecemos, percebe-se como o tempo é valioso e como passa rápido. Então, sabemos melhor o que priorizar.
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